Saturday, March 24, 2007

A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO

A TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
Senador Eduardo Matarazzo Suplicy
06 de março de 2007
Voltou a preocupar, neste início de 2007, a questão da transposição de águas do rio São Francisco. Derrubadas no Supremo Tribunal Federal as liminares que impediam o início das obras, o governo federal começa a tomar as providências para tirar o projeto do papel. Anunciou-se a imediata realização de licitações para os projetos executivos da obra. O ministro Pedro Britto, da Integração Nacional, está fortemente engajado na defesa e realização do projeto, que conta com apoio, empresarial e político, no seu Estado de origem, o Ceará.
O projeto de Integração do Rio São Francisco com outras bacias hidrográficas do Nordeste tem o objetivo de acabar com o problema da seca no semi-árido brasileiro, problema esse que aflige há mais de cem anos o governo e a sociedade brasileira. A proposta tem uma história tão antiga quanto a seca na região e o debate, que também é tão antigo quanto polêmico, é polarizado pelos argumentos contrários ou favoráveis ao projeto.
Nesse sentido, dois governadores de Estado do PT, Marcelo Déda e Jacques Wagner manifestaram dúvidas sobre a validade da transposição. Deram claras indicações, de público, de que não são entusiastas do projeto e desejam maior discussão. Também aqui nesta Casa diversos senadores expressam opiniões críticas ao projeto, alguns e de apoio, outros. O fato é que a transposição continua dividindo o Nordeste. No resto do país, a questão ainda não suscitou a merecida atenção.
O projeto inicialmente apresentado pelo governo federal foi aprimorado. Em 1985, o projeto de transposição do antigo e extinto DNOS - Departamento Nacional de Obras e Saneamento previa a captação, em um único canal, de 300 m³/s de água destinados à irrigação. Esse projeto não previa a revitalização do Rio São Francisco, mas apenas a sua integração com os açudes Castanhão, no Ceará, e Armando Ribeiro Gonçalves, no Rio Grande do Norte.
Em 1994, outra proposta, do então Ministério da Integração Regional, previa a captação de 150 m³/s de água, também para a irrigação e em um único canal, sem revitalização do Velho Chico, integrando os açudes Castanhão, Armando Ribeiro Gonçalves e Santa Cruz.

No ano de 2000, o Ministério da Integração Nacional apresentou uma proposta de captação de 48 m³/s em dois canais, para uso múltiplo, também sem prever a revitalização do Rio São Francisco e integrando os açudes Castanhão, Armando Ribeiro Gonçalves, Santa Cruz, Epitácio Pessoa, Engenheiro Ávidos, Poço da Cruz e Entremontes, e beneficiando uma população 50% maior do que a dos projetos anteriores. Outros 15 m³/s seriam destinados à irrigação no próprio vale do São Francisco.
Por sua vez, o Plano Plurianual (PPA) do Governo Federal 2004/2007 priorizou inúmeras ações no setor hídrico para a Região Nordeste, que envolve a transposição do São Francisco, com extensão prevista até o ano 2015. O Plano é composto de quatro grandes ações: (1) a Integração de Bacias do Nordeste; (2) a Revitalização Ambiental da Bacia do São Francisco; (3) os Projetos de Irrigação na Região; e (4) o Proágua, que visa o suprimento urbano.
A integração far-se-á através de dois canais que serão construídos – um na direção Norte, que atenderá ao Ceará e o Rio Grande do Norte, outro na direção Leste, que levará água para Pernambuco e Paraíba, beneficiando as áreas mais carentes do agreste e dos sertões desses quatro estados. Essas áreas têm como característica geológica a predominância de terrenos cristalinos (70% da área), onde não é possível armazenar água subterrânea de forma permanente nem desenvolver a açudagem intensiva, uma vez que poucos novos açudes de porte significativo podem ser ainda construídos.
Nessas áreas, a potencialidade hídrica dos rios intermitentes já foi transformada em disponibilidade garantida, ao longo do último século, o que permitiu a vida, embora precária, de uma população de 14,6 milhões de habitantes no Polígono das Secas, segundo o censo de 2000. Significa também que o Nordeste Setentrional detém mais de 50% da população do Polígono. Em contrapartida, a soma das vazões regularizadas garantidas por todos os açudes significativos do Nordeste Setentrional representa apenas cerca 5% da vazão garantida no rio São Francisco pela barragem de Sobradinho.
O segundo ponto priorizado no PPA é a revitalização hidroambiental da bacia do São Francisco. Aliás, vale lembrar, que esse aspecto era apontado pelos críticos ao projeto. como a ex-Senadora Heloisa Helena, de Alagoas, como uma de suas lacunas. Essa é uma ação coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente, com a participação do Ministério da Integração Nacional e da sociedade sanfranciscana.
O programa de revitalização contempla ações voltadas para o reflorestamento de áreas críticas, a construção de barragens em rios afluentes, a melhoria da calha navegável do seu curso médio, o tratamento de esgotos das cidades e vilas localizadas nas suas margens, o controle da irrigação e a educação ambiental. Há também ações para a melhoria das condições de vida das comunidades ribeirinhas.
O Governo Federal investiu, em 2004, R$ 26 milhões nessas ações de revitalização do rio. Em 2005, esses investimentos do rio foram de R$ 100 milhões, só na área dos Ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente.
Também há outros recursos destinados ao projeto. Desde 1988, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco - Chesf repassa, diretamente para os Estados e os municípios da Bacia do São Francisco, 6% do seu faturamento bruto, o equivalente a R$ 90 milhões por ano. É um dinheiro que, deve ser obrigatoriamente aplicado em ações de revitalização do rio. De 1988 até agora, a Chesf já repassou R$ 1,350 bilhão para os municípios sanfranciscanos.
O Ministério das Cidades, por sua vez, está aplicando R$ 620 milhões em projetos de saneamento básico e/ou de abastecimento d’água em 86 municípios da Bacia. A degradação do rio, que já dura mais de 100 anos, não é uma ação de curto prazo e nem é responsabilidade somente do Governo Federal, mas também dos governos estaduais e municipais, que devem trabalhar juntos para o enfrentamento do problema.
As perguntas mais freqüentes com relação a transposição do Rio São Francisco são: o que acontecerá após a transposição da bacia do São Francisco? As análises consideraram todas as possibilidades que a interferência na natureza provocaria na região? Está sendo analisada a complexidade sócio-espacial da região?
De acordo com vários pesquisadores as informações disponíveis fazem referência a sistema de engenharia, onde o espaço é pensado de forma geométrica e não geográfica, ou seja, é calculada a vazão para uma possível retirada – 3,5% da vazão total do Rio São Francisco, a capacidade das estações de bombeamento, a extensão dos aquedutos, o diâmetro dos túneis, mas pouco se analisa sobre a complexidade sócio-espacial da região e sobre os impactos sociais desse projeto.
Genericamente os estudos aparecem mais como um conjunto de justificativas para os empreendimentos que consistem em repor vegetação, implantar pequenos parques, etc do que analisar o efeito cumulativo do crescimento das atividades econômicas, da expansão das áreas ocupadas, do crescimento da população, da alteração de vazão dos rios em função da ocupação das várzeas, de um maior consumo de água, da evaporação, das alterações na infiltração das águas pluviais - considerando a impermeabilizaçã o -, da destruição das matas de galerias em especial nas áreas de nascentes, etc. Essas alterações bem como as mudanças climáticas e de micro-climas não estão mencionadas nos estudos disponíveis.
Também, não se tem notícia de análise de estudos prévios dos impactos de vizinhança ou do debate sobre os planos diretores de todos os municípios que serão atingidos como estabelece a Lei 10257/01, Estatuto das Cidades, para averiguar se uma obra dessa envergadura atende aos princípios da função social da propriedade.
Ao tratar da transposição do Rio São Francisco deve-se considerar que haverá uma alteração em toda a dinâmica territorial do país. Sendo assim, é necessário que a sociedade brasileira seja envolvida no debate dessa problemática e não apenas o que está definido como áreas dos comitês da Bacia do São Francisco. Afinal, como dito pela professora Arlete Moysés Rodrigues - professora livre docente em geografia do IFCH-Unicamp - a natureza não tem fronteira administrativa.
Por outro lado, João Urbano Cagnin, coordenador dos estudos de integração de bacias da região Nordeste do Ministério da Integração Nacional, acredita que a integração de bacias no Nordeste irá promover a igualdade de oportunidade para os brasileiros daquela região. Em suas palavras:“Uma pequena quantidade de pessoas serão removidas, como acontece em todas as grandes obras, porém elas têm a possibilidade de ‘ficar melhor’, pois serão indenizadas corretamente pelo governo”, Diz ele: “Eu defendo o projeto, pois é um dos melhores projetos que temos hoje”.
De acordo com dados do Ministério da Integração Nacional o projeto de transposição e revitalização do São Francisco vai levar desenvolvimento para a região do semi-árido. Ele é um projeto estruturante que visa a geração de desenvolvimento humano e econômico. Alternativas de combate à seca, como, por exemplo, projetos de implantação as cisternas, de dessalinização da água do mar e a utilização de águas subterrâneas, não resolveriam o problema de desenvolvimento da região Nordeste.
João Cagnin afirma ainda que o projeto não trata apenas de levar água para beber, mas para manter as atividades industriais, comerciais e agrícolas da região, e essas atividades exigem uma demanda grande de água. “Sem esse recurso hídrico as indústrias novas não se instalam e, pior, as que estão lá não conseguem manter suas atividades. Existem casos de indústrias que deixaram de ir para a região porque em época de seca o governo não garante a manutenção de suas atividades, devido à falta de água”.

Dada a magnitude dos recursos e interesses envolvidos, uma decisão cuidadosa é indispensável. Se for para executar o projeto, é preciso explicar a decisão à sociedade brasileira, em especial a Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra. Seria uma atitude condizente com o respeito que Dom Luiz demonstra pelo Presidente e que o Presidente demonstra por ele.
Quero deixar aqui uma palavra sobre Dom Luiz, a quem tive a honra de conhecer depois da greve de fome que ele realizou contra a transposição, em Cabrobó. Trata-se de uma pessoa de grande seriedade, que se dedica desde o início dos anos 70 às pessoas pobres do vale do São Fransisco. Ele conhece os problemas sociais e ecológicos da região e é profundamente respeitado por todos. É uma temeridade ignorar as suas ponderações.
No dia 21 de fevereiro último, Dom Luiz enviou uma carta ao Presidente da República, que peço que seja registrada na íntegra nos Anais do Senado. A disposição dele é retomar o diálogo sobre o São Francisco e as soluções para o semi-árido, diálogo que ele considera apenas iniciado.
Na sua carta ao Presidente Lula, Dom Luiz menciona, entre outros aspectos, que o custo das obras iniciais do projeto de transposição de águas do São Francisco está estimado em R$ 6,6 bilhões, mais da metade de todo o orçamento destinado a recursos hídricos no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Recorda, também, que o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou relatório afirmando que o projeto não beneficia o número de municípios e de pessoas que o governo federal afirma que atingirá.
Em sua carta, Dom Luiz lembra que a Agência Nacional de Águas (ANA), organismo de Estado, criado para a gestão estratégica do uso da água no Brasil, “propõe 530 obras para solucionar os problemas de abastecimento hídrico em todos os núcleos urbanos acima de 5.000 (cinco mil) habitantes do semi-árido brasileiro até 2015. Essas obras beneficiariam as populações mais necessitadas, e custariam 3,6 bilhões de reais, portanto, mais baratas, mais abrangentes, mais eficientes que qualquer obra de transposição hídrica”.
O governo, em especial o Ministério de Integração Regional, certamente tem argumentos sólidos a apresentar nesse debate. Não há porque não realizá-lo, com a devida profundidade, antes do início das obras.
Aos críticos do projeto, cabe também apresentar de forma convincente, não só a crítica à transposição, mas um detalhamento das alternativas.
Dom Luiz, assim como muitos outros técnicos e especialistas, está convencido de que existem alternativas melhores, socialmente mais justas e mais baratas do que a imensa obra de transposição de águas do São Francisco para o Nordeste Setentrional.
Em sua carta ao presidente Lula, ele afirma:
“Em nosso encontro [em dezembro], o senhor me disse que ‘não seria louco de levar essa obra à frente se apresentássemos uma alternativa melhor’. Agora, somando as obras propostas pela ANA juntamente com as iniciativas de captação, armazenamento e manejo de água de chuva desenvolvidos pela Articulação do Semi-Árido (ASA), o senhor tem uma chance de escolha muito melhor, pela qual seu governo ficará marcado para sempre na história do nordeste brasileiro, sua terra natal. Não faltam alternativas. Falta uma decisão política mais lúcida. Nosso pedido, senhor presidente, é que se retome o diálogo e que se garanta que seja amplo, transparente, verdadeiro e participativo, incluindo toda a sociedade do São Francisco e do Semi-Árido, conforme foi pactuado em Cabrobó em outubro de 2005 e renovado através de pedido formal por carta protocolada em 6 de fevereiro último”.
Também o professor Aziz ab’Saber, que comigo acompanhou o presidente Lula em algumas de suas caravanas pela cidadania, dentre as quais a região do rio São Francisco, em entrevista ao Jornal da Ciência de dezembro de 2004 formulou um alerta sobre o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco:
“Essa história me deixa indignado porque eles, os governantes e os políticos, não têm noção de escala, e sabem que o povo também não tem. O semi-árido tem 750 mil quilômetros quadrados, no mínimo. A transposição não irá resolver o problema. É preciso também saber a quem irá servir a transposição das águas. Se servirá aos capitalistas, que têm fazendas e moram em apartamentos chiques em Fortaleza ou Recife? Ou aos pobres da região, pessoas que passaram a vida resistindo à seca? Fiz um trabalho pequeno sobre esse assunto, quando era professor de Planejamento, na USP. Estudando a região do Jaguaribe, no Ceará, que pretensamente será a mais beneficiada pela transposição das águas, parei em uma pensão para descansar. Fazia um calor tremendo e fui ao rio. Um senhor olhava suas culturas de mandioca, milho e feijão. Estava vendo se não havia nascido erva daninha. Perguntei se era econômico o que ele estava fazendo. Disse que não sabia, mas que era a base de sua sobrevivência, já
que não tinha terras e estava ameaçado por todos os lados. Disse, também, que os fazendeiros das terras altas na época da seca iam ao Recife e a Fortaleza, e lá conseguiam que fosse liberada a água dos açudes, no Depto. de obras. Com isso, a água alagava e destruía as culturas de gente como aquele senhor, que perdiam a sua última forma de resistência. Veja, não sou contra a idéia da transposição das águas, quero apenas fazer uma previsão de impactos positivos e negativos. O problema essencial é que, para um país do tamanho do Brasil, não basta pegar um pequeno ponto e fazer dele uma demagogia sobre planejamento. Com os R$ 2 bilhões necessários para iniciar a transposição do São Francisco, seria possível resolver vários outros problemas do Nordeste. Mas, aí, quando o resultado não for o esperado, quem começou a transposição vai dizer que iniciou o projeto e a responsabilidade é de quem não deu continuidade”

É um apelo que o presidente Lula precisa atender. Trata-se de cumprir o que foi combinado quando o então ministro Jacques Wagner, em nome do presidente Lula, negociou o fim da greve de fome de Dom Luiz em Cabrobó. A luta de Dom Luiz não é política ou partidária no sentido estreito dessas palavras. Ele não faz oposição ao governo Lula. Ao contrário, na carta mencionada ele declara que sempre vestiu a camisa do presidente Lula. “Ainda estamos vestidos nela”, escreveu. E acrescentou: “Nossa contribuição de fiel militante da causa do povo é para que o senhor seja verdadeiramente aquilo a que se propôs, o de ser o presidente de todo o povo brasileiro, especialmente dos pobres deste país, por serem os que mais necessitam de sua atenção”.
Em verdade o rio São Francisco precisa ser visto não como um problema, mas como uma extraordinária dádiva de Deus, com grandes potencialidades e que precisa ser bem utilizado em beneficio de todos os brasileiros. O Congresso Nacional é justamente o ponto de encontro de todos aqueles que queiram contribuir para que consigamos chegar a mais sábia decisão sobre o rio historicamente conhecido como da unidade nacional.

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