AS GUERRAS SERTANEJAS DE CANUDOS E CONTESTADO – PARTE 01.
Emilio Gennari, fevereiro de 2007.
Apresentação.
Quando o peso da exploração aumenta a carga imposta à classe trabalhadora, muitos pensam em desistir da luta. Pouco a pouco, o desânimo eleva o número de seus adeptos e alimenta em setores cada vez mais amplos da população o desejo de deixar as coisas acontecerem.
Por não se oporem à correnteza criada pelos fatos, as pessoas se iludem com a possibilidade de serem poupadas de sua força destruidora, sem perceber que a resignação fortalece o hábito de deixar passar em silêncio as injustiças que preparam novos e mais pesados sofrimentos.
Preso neste vórtice que arrasta as frágeis esperanças de futuro, o senso comum procura refúgio na indiferença, na repetição incansável de que as coisas são assim porque é natural que assim sejam, ou nas lamúrias típicas de quem espera por uma mudança da qual quer aproveitar os benefícios, mas em cuja construção não está disposto a se envolver.
Ao se desvincular de tudo o que extrapola a rotina diária entre casa, trabalho, escola, religião e lazer, o mundo do cidadão comum se fecha diante de quem procura alertá-lo dos perigos iminentes. O seu campo de visão se encurta e, dobrado sobre si mesmo, prefere não ver, não saber, ficar alheio a tudo o que pode questionar as poucas e débeis seguranças que lhe servem de proteção.
Mas os problemas persistem. Tornam-se cada vez maiores. Avolumam-se a tal ponto que não há solução sem mais dores e sofrimentos. Aflito, o senso comum busca ignorar o que cresce à sua volta, pois, em sua visão mágica, o simples lembrar dos perigos ganha as feições de uma ameaça direta à sua existência.
Felizmente, até mesmo quando o sonho de lutar por uma sociedade da qual seja banida toda exploração do homem pelo homem parece algo totalmente fora de moda, ou quando as elites se desdobram para desfigurar o compromisso de quem se nega a ser vítima silenciosa de sua dominação, há sempre um pequeno barco que, apesar de sua fragilidade, teima em desafiar a correnteza. Nele remam sem descanso homens e mulheres que procuram despertar os sentimentos de dignidade e rebeldia que, aos poucos, plantam na garganta dos de baixo a vontade e a força de dizer "Não!" às investidas que negam a possibilidade de um futuro melhor para todos.
Alimentada pela memória e tradição de luta do passado, esta obstinada tripulação usa a história como mapa. Ao resgatar os desafios já enfrentados por sua classe, nossos navegantes buscam aprimorar a percepção dos limites e das possibilidades do presente, certos de que os oprimidos abrirão os olhos para enfrentar as corredeiras aparentemente instransponíveis que hoje abastecem a opulência e a dominação de seus opressores.
Cientes do desafio imposto por esta tarefa e diante dos parcos meios de que dispõem, nossos navegantes encarregam uma coruja de trazer até nós o resultado de seus estudos sobre as guerras sertanejas de Canudos e Contestado. Através do relato desta sábia representante do mundo das aves, nos adentraremos na realidade da época, tocaremos as formas peculiares através das quais as populações envolvidas construíram sua resistência diante dos projetos da elite e acompanharemos as preocupações do poder em destruir e desqualificar qualquer sinal de suas lutas.
Por isso, cedemos logo a palavra à Nádia, a coruja, para que nos conduza pelos caminhos da história e ajude a reconstruir a ponte que une os anseios de mudança dos oprimidos de ontem, de hoje e de sempre.
Introdução.
Manhã de quinta-feira. As nuvens que cobrem a cidade dão à periferia o tom cinzento que reflete nas paredes sem cor a sensação de tristeza de seus moradores. Resignados diante de sua própria sorte, homens e mulheres de todas as idades se dirigem ao trabalho cotidiano torcendo para que São Pedro segure a chuva por mais um tempo.
Entre os ruídos que acompanham esta desordenada movimentação de pessoas e sentimentos, os ouvidos distinguem claramente o vociferar típico de uma discussão. Levadas pela curiosidade, as pernas caminham em direção da janela aberta de uma casa através da qual os olhos assistem atônitos a uma cena inesperada.
Sentado a mesa, um homem alto e corpulento gesticula animadamente enquanto as palavras que saem de sua boca traduzem em alto e bom som a negação anunciada pelo menear da cabeça. Em pé diante dele, com ar decidido e a asa direita apontada para o peito de quem chama de secretário, uma pequena coruja arregala os olhos e, sem se deixar intimidar pelo tamanho do seu oponente, ordena:
- "Escreva: Canudos e Contestado!"
- "Não! Não! E não!", repete o homem com insistência ao mesmo tempo em que faz a caneta tocar as penas da ave como quem, desembainhada a espada, se prepara para um duelo.
- "Você vai fazer isso sim! - retruca o pequeno ser sem recuar um único centímetro. Resgatar os enfrentamentos que o povo sustentou para defender as comunidades por ele criadas vai ajudar as pessoas a perceberem que, a partir de sua dignidade e rebeldia, é possível começar a enfrentar a situação de morte e exploração em que vivem e dar sérias dores de cabeça aos poderosos que se fartam às suas custas!"
Sem se dar por vencido, o rosto do secretário assume um ar de reprovação enquanto a boca prepara palavras duras:
- "Nádia, você ficou louca?!? Quem é que vai se interessar pelos feitos de um bando de jagunços fanáticos, atrasados e maltrapilhos, alucinados por líderes loucos, desequilibrados e lunáticos que pregam idéias estranhas, contrárias aos progressos da sociedade de seu tempo e cujo único lugar seguro seria o manicômio?!?".
Certo de ter conseguido infligir uma estocada mortal na teimosa insistência da coruja, o homem deita a caneta na resma de papel e aguarda com expressão irônica a resposta da ave.
Apoiando o queixo numa das asas, Nádia olha disfarçadamente para o alto com um sorriso capaz de fazer balançar os adversários mais impertinentes. Alguns instantes de silêncio... Um longo suspiro... E...
- "Parabéns! Você conseguiu!", diz calmamente a ave.
- "Parabéns... Por quê?", indaga o ajudante entre a desconfiança e a possibilidade de ter se livrado de um trabalho.
- "Ora, querido bípede da espécie humana, porque você conseguiu reunir numa única frase os principais adjetivos que a elite e seus meios de comunicação não cansavam de atribuir aos sertanejos para semear entre a população as razões que justificariam a dura repressão a ser desencadeada contra os dois movimentos. Não é uma novidade o fato que os de cima pintam como demônios os que ameaçam seus interesses antes de desatar os golpes com os quais pretendem silenciar qualquer ato de rebeldia. Desta forma, toda a responsabilidade pelos horrores cometidos em nome da lei e da ordem vai recair nas próprias vítimas.
Conseguida esta façanha, ninguém se dá ao trabalho de perguntar as razões pelas quais simples sertanejos empunharam as armas para defender suas comunidades das tropas oficiais. Menos ainda vai aparecer alguém que queira saber por que resolveram construí-las, como conseguiram atrair tantos adeptos e por qual razão era tão necessário destruí-las.
Por este caminho, a exploração que condena os de baixo a condições de vida insustentáveis é ocultada pelas acusações de banditismo, fanatismo e loucura em nome das quais, as perseguições, os massacres, as execuções sumárias e os demais meios empregados para silenciar a revolta dos oprimidos ganham uma áurea de justo castigo para quem ousou desafiar os donos do poder", conclui Nádia com a seriedade de quem procura substituir confortáveis aparências pela compreensão mais profunda da história.
Desarmado e envergonhado, o secretário abaixa a cabeça em sinal de derrota.
Em silenciosa comemoração, a coruja começa a andar de um lado pra outro. Ave e homem trocam olhares típicos de quem tem consciência de sua posição, até que, limpada a garganta, Nádia assume definitivamente o papel de vencedora ao afirmar:
- "Escreva: Capítulo Primeiro..."
1. O sertão nordestino entre a seca e o latifúndio.
- "No século XIX – diz a coruja com a asa apontada para as folhas que aguardam as palavras do seu relato – os viajantes que atravessam as regiões interioranas do nordeste brasileiro ficam chocados diante da vida miserável dos seus habitantes. Em todos os municípios, o olhar se depara com crianças raquíticas, mendigos com membros deformados, homens e mulheres vítimas de doenças repugnantes.
Apesar das longas jornadas de trabalho sob um sol escaldante, a fome nunca deixa de sentar à mesa de mais de 80% das famílias sertanejas. Um prato diário de angu de farinha de mandioca misturado com gordura de cabra é o cardápio que os pobres só podem se permitir em anos de maior prosperidade. Some isso às dificuldades de acesso à água potável, à precariedade das condições higiênicas e às disputas sangrentas pela propriedade da terra e não terá problemas em explicar os altos índices de mortalidade que afligem a região.
É sobre esta base que, tanto o Império, como a República, tecem suas redes de lealdade política com os senhores locais. Recursos fiscais, concessões de verbas, empréstimos, decisões favoráveis para a construção de obras públicas e, quando necessário, até o uso de tropas oficias são a moeda de troca com a qual se fortalece a dependência dos governos central e provincial em relação aos proprietários locais aos quais cabe a efetiva administração das regiões de cada província.
Além de estimular a corrupção, a busca desenfreada de vantagens financeiras e as constantes rivalidades políticas, esta situação faz com que, no sertão, a própria justiça seja aplicada por jagunços contratados por fazendeiros e latifundiários.
Em outras palavras, mesmo sob o governo da República, a máquina administrativa do Estado fecha os olhos diante das formas pelas quais os coronéis constroem e mantêm uma ordem social dirigida a favorecer os seus interesses. Em contrapartida, os chefes locais costuram alianças com os políticos que integram esta máquina conseguindo, à custa de fraudes e intimidações brutais, os votos de que precisam para se eleger, e, quando isso lhes é requisitado, fazendo contribuições respeitáveis para garantir a presença de seus representantes no governo do Estado.
O controle quase absoluto dos latifundiários sobre suas áreas de influência leva a população a dançar conforme a música e a buscar relações amistosas com a elite local. Trata-se, enfim, de conviver com a exploração com um sentimento que, via de regra, varia entre a submissão resignada e a dívida de gratidão diante das ações que conferem um semblante caridoso aos proprietários que procuram a fidelidade dos subordinados ora através do compadrio, ora de favores distribuídos de forma seletiva".
- "Até agora, não ouvi você falar da seca. Será que a falta de chuva não é o elemento central para explicar a pobreza da população?" – irrompe o secretário sem fazer cerimônias.
A coruja sorri, pisca os olhos e sem titubear responde:
- "Os seres da sua espécie têm a estranha capacidade de trocar vaga-lumes por faróis de milha e acabam atribuindo aos caprichos da natureza a responsabilidade pelas desgraças que deveria ser procurada nas relações que estabelecem entre eles mesmos. Pois, uma coisa é dizer que o problema é a seca e outra, bem diferente, é afirmar que a escassez de água apenas vem agravar e evidenciar a realidade de miséria na qual vive o povo simples.
Ninguém duvida que as secas de 1844-1846, 1869-1870, 1877-1879 e 1888-1889, ampliam a miséria e expulsam multidões de sertanejos para o litoral e as regiões norte e sudeste. O problema é que a carestia não dá trégua nem mesmo quando as chuvas obedecem ao ritmo normal da natureza da região. Ou seja, a razão fundamental de tanta pobreza não deve ser atribuída a São Pedro, mas sim aos proprietários de terras cuja sede de riqueza e de poder retira da maior parte da população as condições básicas para plantar, colher e viver.
Não podemos esquecer que o monopólio da terra no Brasil vem de longe, deste antes da colonização portuguesa. Em 1494, ao assinar o Tratado de Tordesilhas, os reinos de Espanha e Portugal dividem entre si a propriedade do continente. Com isto, é a coroa a ter o poder de doar extensões enormes do território nacional às pessoas julgadas merecedoras desta dádiva. É assim que nobres e homens diretamente ligados à corte concentram em suas mãos parcelas significativas de terra mesmo que não tenham a menor condição de controlá-las e fazê-las frutificar.
Após quase três séculos, o país conta com uma grande quantidade de regiões oficialmente desocupadas e desabitadas. Diante da necessidade de aumentar os recursos de seu cofre, o império se preocupa em fazer com que estes territórios não estejam demasiado disponíveis a qualquer pessoa que tenha interesse em ocupá-los, mas sim que sejam vendidos a caro preço.
A expansão da cafeicultura proporciona ao governo o momento ideal para realizar este desejo. A elevação das quantias pagas pelos que querem comprar um pedaço de chão evita que trabalhadores livres se transformem em proprietários fugindo da condição de vendedores de sua força de trabalho. Ao aumentar o valor das terras e ao dificultar sua aquisição, a elite busca garantir um amplo contingente de trabalhadores obrigados a se fixar em suas plantações para poder sobreviver.
É assim que, em 18 de setembro de 1850, é promulgada a lei N.º 601, mais conhecida como Lei de Terras, que visa assegurar três objetivos básicos: 1. Proibir a aquisição de áreas por outro meio que não seja a compra, extinguindo, de conseqüência, o regime de posse; 2. Impossibilitar que simples colonos adquiram os lotes disponíveis ao vendê-los a caro preço, em leilão e mediante pagamento à vista; 3. Usar os recursos assim obtidos para o financiamento da imigração destinada a substituir os escravos nas lavouras após o fim do tráfico com a África.
Graças a esta medida, a propriedade fundiária se concentra cada vez mais nas mãos dos fazendeiros, um grande número de pequenos proprietários e de posseiros é forçado a deixar suas antigas lavouras para alimentar a quantidade de trabalhadores disponíveis e reduzir os salários a serem pagos.
Neste contexto, em 1895, o governo da Bahia promulga a lei N.º 286 que estabelece como devolutas, ou seja como desocupadas ou desabitadas, todas as terras que não são de uso público, aquelas dos proprietários que não possuem um título legítimo, as posses que não estão fundamentadas em documentos de valor legal e as áreas indígenas cujas aldeias foram extintas por lei ou acabaram sendo abandonadas por seus habitantes. A esta norma, em 21 de agosto de 1897, a administração baiana acrescenta a lei N.º 198 pela qual são consideradas devolutas todas as terras em relação às quais não há qualquer título legal de propriedade e as que não vierem a ser legalizadas nos prazos determinados.
Não é necessário ser especialista em questões agrárias para entender que a nova legislação torna ainda mais precária a situação dos ocupantes pobres de terras familiares (que não dispõem de documento que comprove a propriedade) e coloca seu futuro à mercê das pressões dos latifundiários e das personagens politicamente influentes da região onde vivem.
É sobre esta base que vai se montando um cenário no qual a grande maioria dos trabalhadores agrícolas vai passar a vida inteira como posseiros que devem favores em troca da frágil possibilidade de manterem o seu acesso a terra, como meeiros obrigados a pagarem o aluguel do terreno tanto em produtos como em trabalhos para os fazendeiros, como marginalizados constantemente a procura de emprego e sujeitos a sofrer as penas previstas pelas leis contra a vadiagem, ou flutuando de um setor para outro em condições que pouco se distanciam da indigência.
Se a isso somamos o fato de que quase todas as terras com acesso à água estão nas mãos dos latifundiários, não é difícil entender que os períodos de seca só agravam o que já estava ruim precipitando o povo simples numa situação de penúria insustentável.
- "O fim da escravidão, em maio de 1888, e a proclamação da República, em novembro de 1889... não ajudam a aliviar esta situação?!?" – questiona o secretário com ares de quem aposta nas possibilidades de mudança trazidas pelos altos representantes da política do país.
- "É exatamente o contrário!" – retruca a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa esquerda.
- "Como assim?!?".
- "Em primeiro lugar - diz Nádia com expressão compenetrada -, nem a extinção do trabalho escravo, nem o fim do império alteram a estrutura agrária e nada ameaça a existência do latifúndio. Não há terra a ser destinada aos escravos recém-libertados e aos camponeses livres que continuam não vendo saídas para a situação deplorável em que se encontram. Apesar de representarem um progresso social, econômico e político para o país, as possibilidades de melhora para as camadas mais baixas da sociedade são muito reduzidas.
De um lado, o novo regime costura uma aliança entre os empresários da indústria e os latifundiários (muitos deles ex-escravistas) para garantir a coesão das elites e, de outro, a situação econômica do nordeste se deteriora em função das dívidas do país e da participação da região na pauta de exportações".
- "Daria para ser um pouco mais clara..."
- "Vamos por partes - diz a ave ao apoiar o corpo numa pilha de livros. Contrariando o que aconteceu em outros países quando da queda do regime monárquico, no Brasil o advento da República não conta com o apoio popular e sequer desperta qualquer tipo de participação efetiva do povo simples. Fruto da ofensiva das elites militares e civis, a mudança de regime não traz em seu bojo nenhuma medida destinada a minorar os sofrimentos das camadas mais baixas da população.
Em sua disputa pelo poder, empresários e latifundiários passam longe de qualquer proposta que guarde relação com uma possível reforma agrária ou seja destinada a elevar a renda da classe operária. Ao contrário, a importância crescente do café no conjunto das exportações brasileiras leva a uma ulterior concentração das terras mais férteis e o lento processo de industrialização busca criar um grande número de desocupados e desempregados como forma de reduzir os salários e elevar a exploração.
Do ponto de vista dos direitos políticos, a Constituição de 1891 define como eleitor o cidadão do sexo masculino, alfabetizado e maior de 21 anos. Além de negar às mulheres o direito ao voto, a norma legal exclui a esmagadora maioria da população à qual o Estado continua não proporcionando o acesso à educação básica. Em breves palavras, a Republica cria regras que continuam inviabilizando na prática o aparente conteúdo democrático de suas formulações políticas.
O afastamento popular em relação ao novo regime ocorre também em função da separação entre o Estado e a igreja. A liberalização da prática religiosa, a administração dos cemitérios pelas autoridades municipais, a obrigatoriedade do registro de nascimento e do casamento civil são medidas que, além de execradas pelo clero católico, ferem o sentimento religioso. Ao promover a dessacralização do mundo, o caráter leigo da República encontra a resistência de quem, por séculos, havia aprendido a respeitar e reverenciar o imperador como representante de Deus na terra e defensor da religião entre os homens. Este choque cultural aglutina setores da população que, diante da perspectiva de seu ulterior empobrecimento, encontram na religião o elemento que dá identidade e sentido à sua revolta contra as transformações políticas recém-introduzidas.
Se isso não bastasse, a fragilidade do equilíbrio de poder no interior do novo regime é agravada pelos sérios problemas que afetam a economia do Brasil. Apesar da grande quantidade de produtos agrícolas vendidos no mercado mundial, o país continua importando mais do que consegue vender. Além de elevar as dívidas com a Inglaterra, o governo não tem recursos suficientes para investir no desenvolvimento de todas as regiões e passa a privilegiar as áreas que mais participam da pauta de exportações. Estamos falando, por exemplo, de obras de infra-estrutura como estradas de ferro, redes de telégrafos, melhorias dos portos e ações destinadas ao aproveitamento das vias fluviais. Com o café representando 61,5% do total comercializado com o exterior, o centro-sul do país acaba concentrando as verbas destinadas a fortalecer a balança comercial.
Na última década do século XIX, a economia nordestina, baseada na produção de açúcar e cacau, encontra-se em franca decadência. A participação da Bahia nas exportações nacionais não passa de 5% e a sua elite não conta com grandes recursos do governo federal. A saída encontrada pelas administrações locais vai no sentido de elevar a carga de tributos a serem cobrados da população mais desprotegida já que ninguém ousa impô-los a coronéis e fazendeiros. É assim que, nas feiras realizadas neste Estado, quem quiser expor e vender produtos deve pagar as taxas impostas pelos arrecadadores.
Esta situação é agravada pela política financeira adotada pelo regime republicano. Rui Barbosa, o primeiro a ocupar o cargo de Ministro da Fazenda, autoriza uma emissão desenfreada de papel moeda como forma de arcar com os compromissos e as dívidas do Estado. Esta medida dá origem a um progressivo aumento dos preços que faz disparar o custo de vida. De 1888 a 1890, os gêneros de primeira necessidade são 62% mais caros e, de 1891 a 1894, a inflação atinge 118%, um verdadeiro golpe baixo na luta pela sobrevivência dos setores mais empobrecidos. (1)
Para o mundo sertanejo, estas transformações significam uma mudança para pior. Diante do agravar-se da situação de miséria, os ideais republicanos retratados nos discursos indecifráveis e arrogantes das elites não fazem nenhum sentido para a população pobre da Bahia e do nordeste. Na base da pirâmide social, as expressões que apelam à volta da monarquia não têm como motivo inspirador a identidade política do povo com o imperador, mas tão somente a percepção de que, por mal que estivessem, as coisas não eram tão ruins como sob o novo regime".
Um breve instante de silêncio se estabelece entre a coruja e seu secretário. As mãos ainda escrevem as últimas palavras quando a língua deixa escapar uma pergunta:
- "Nádia, se é verdade que a miséria do sertão nordestino deita raízes profundas já na época do Império, como é que o povo não reagiu antes aos desmandos das elites?".
- "Bom, pra início de conversa, vale a pena esclarecer que, durante a escravidão, assistimos sim a inúmeras lutas levadas adiante por escravos insurretos. O que precisa explicar, portanto, é porque homens e mulheres livres, que vivem na pobreza, têm reações que se colocam bem aquém do esperado em termos de revolta.
Neste sentido, além dos vínculos de compadrio com coronéis e fazendeiros da região (que criam relações de dependência e fidelidade) e das necessidades impostas pela sobrevivência, a religião desempenha um papel fundamental na manutenção da paz social. A grande maioria da população sertaneja vivencia um catolicismo por ela mesma produzido diante das dificuldades e das crescentes amarguras do dia-a-dia. Neste se misturam uma resistência estóica aos sofrimentos com a resignação trazida por esperanças que Deus, a Virgem Maria e os santos protetores irão intervir para o sertanejo não sucumbir diante dos desafios da vida, vista como um vale de lágrimas.
Nas áreas mais afastadas do litoral e dos grandes centros do interior, os moradores acreditam que os infortúnios são o resultado da não aceitação do destino pré-determinado de cada um. A seca, a fome e as doenças são vistas como uma resposta divina a esta atitude e, neste sentido, a própria subjugação política passa a ser aceita sem maiores protestos. Este conjunto de crenças leva à percepção de que o ser humano não tem controle sobre os acontecimentos que mudam o rumo da sua existência e à convicção de que se Deus está mandando o sofrimento é necessário que o povo ore e se sacrifique ainda mais para merecer as suas bênçãos. As romarias, as procissões e a própria autoflagelação expressam os desejos intensos que nascem do sofrimento cotidiano e são os meios pelos quais os sertanejos buscam a purificação do corpo e do espírito, anseiam a obtenção do céu dos favores que não conseguem na terra e reúnem forças para superar as dificuldades confiando na proteção divina.
Quando as orações e os demais rituais falham, os devotos sertanejos culpam a si mesmos, prometem mais abnegação e sofrimento, e apesar das duras provações, homens e mulheres sentem que suas preces são atendidas toda vez que a chuva cai e faz a terra florescer. As famílias se reúnem, retornam às terras abandonadas nos períodos de seca, plantam graças aos créditos conseguidos juntos aos proprietários rurais (que alimentam assim o círculo vicioso de dívidas e obrigações) e vêem o momento de relativa prosperidade como uma dádiva de Deus que eles não merecem.
Apesar das aparências, o conjunto destas crenças não leva os devotos a enfrentarem a vida com um sentimento de completa resignação. Se, de um lado, a fé na intervenção das forças sobrenaturais reduz a necessidade de formas mais aprimoradas de controle político, de outro, a luta e o trabalho árduo para vencer os obstáculos, o sacrifício pessoal, a partilha dos poucos recursos disponíveis com parentes distantes ou com vizinhos mais necessitados, revelam aspectos nem sempre evidentes da religiosidade sertaneja. Quando o dilema central é saber o que Deus deseja do homem para libertá-lo da insegurança cotidiana que ameaça a sua sobrevivência, em determinadas condições, a religião pode vir a ser a fonte inspiradora de um mundo novo.
Neste contexto, a expressão «se Deus quiser», que encerra a maioria das frases pronunciadas pelo povo simples, pode deixar de significar mera submissão à realidade como fruto dos desígnios divinos ou apoio destes aos projetos das elites no poder. Deus pode não querer determinadas coisas e apontar outras. Na medida em que isso passa a ser vivenciado coletivamente, tende a ganhar cores e formas que escapam do controle da ordem dominante e se transformam numa ameaça à manutenção da mesma".
- "A hierarquia da igreja católica participa deste processo?"
- "Nada disso – afirma a coruja ao reforçar suas palavras com o menear da cabeça. Ainda que, neste momento, bispos e padres estejam em rota de colisão com as reformas introduzidas pela República, eles não têm interesse e inserção suficientes para sequer sugerir esta possibilidade. Todos os estudos evidenciam uma igreja distante das regiões interioranas. Na Bahia, Estado onde se dará a guerra sertaneja de Canudos, das 190 paróquias existentes em 1887, 124 não dispõem de um padre que viva nelas e 80 destas últimas só conhecem a presença de um sacerdote a cada 3 ou 4 anos quando o vigário ou seus assistentes resolvem passar nas fazendas mais afastadas com o intuito de promover batizados, casamentos, confissões e celebrar missas. (2)
Além das inúmeras vezes em que estas visitas são canceladas, o fato dos rituais acontecerem sob o olhar atento dos coronéis impede qualquer crítica à atuação destes. Se isso não bastasse, o próprio esforço iniciado pela igreja católica do Brasil, em 1883, para melhorar a qualidade do clero local visa combater o avanço de protestantes, espíritas e maçons nas áreas interioranas, abafar a ação de grupos que estejam dispostos a apoiar a secularização do Estado, combater os desvio do catolicismo local, mas passa longe de colocar o dedo nas feridas que condenam à miséria centenas de milhares de pessoas.
De tempos em tempos, as lacunas deixadas pela ausência de um vigário são supridas por missionários errantes que andam pelas regiões mais remotas e empobrecidas. O problema é que a maioria deles, oriundos da Itália e da Alemanha, não fala a língua local o tanto que basta para serem entendidos pelo povo, razão pela qual este esforço acaba sendo totalmente perdido.
O vácuo deixado pela igreja oficial é ocupado pelos beatos, ou seja, por religiosos seculares, andarilhos e leigos que adotam uma vida de penitências e cujas pregações, terços, celebrações imitam o comportamento dos padres e fazem avançar a religiosidade popular. O sacrifício e a dedicação em patamares superiores aos que são vivenciados pela população, atribuem a estas pessoas uma áurea de superioridade moral e de nobreza que, além de destacá-las entre seus pares, ganha o apoio e a confiança dos sertanejos.
É neste contexto que, após percorrer uma ampla região do sertão nordestino, um peregrino que ganha fama e respeito pelos seus conselhos e pela vida ascética que conduz funda no interior da Bahia uma comunidade que passará a ser conhecida no país inteiro. Vamos tratar disso no próximo capítulo ao falar justamente desta personagem controversa que responde pelo nome de..."
2. Antonio Conselheiro
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